Produção Textual

a língua não é uma lei, a língua é uma dança

Pele de Papel

A língua não é uma lei, a língua é uma dança

 

 

Poderia ter feito do sábado um filme de terror do tipo aconchegante, como os do mestre que ensinou há muito tempo atrás e hoje a relevância da menção horária para conduzir o ritmo da coisa que vai mais ou menos assim, dependendo da hora do dia. 06:19, horário de Lisboa, a minha favorita. Sou absolutamente incapaz de desconsiderar o fator “a favorita” quando penso nela. Fiz dois sanduíches de queijo e os meus dedos estão mais ou menos engordurados para dar às teclas, mas a escrita não espera, e se ousar ignorar a voz da língua em mim acabo sufocada com um dicionário atravessado no interior da garganta. As arestas até se podem ver a querer romper a pele do pescoço.
Passei a noite em pé a fazer rigorosamente nada útil, outra vez refém do fogo que corre abaixo da minha pele, onde deveria passar sangue mas arde, e é um grande inimigo da paz e do conforto. Agora penso que o fiz só para chegar a casa, preparar dois sanduíches de palavras e salvar este ensaio da mesmice académica. Escrevi automaticamente académica e não acadêmica, estou há muito tempo longe do meu país. Estou há muito tempo euromecanizada. Talvez esse papel não devesse ser um ensaio, mas a leveza que há em chamá-lo papel faz com que não me pingue uma gota de culpa sobre a pele; não chove lá fora mas poderia, o texto agradeceria tal poética. Eu não escolho o que escrevo, sou o portal. A escrita foi quem me escolheu, deusa, louca, feiticeira. Mas este bolo que eventualmente vai queimar acabará por explicar a pele.
Li outra vez aquele pdf, devo refletir. Pois já está: isso é o que eu faço o tempo inteiro. Quando
falo com alguém tenho análises internas. Quando não falo com alguém tenho análises internas.
Quando sonho tenho análises internas e ao acordar reflito sobre esses símbolos e vou ao
dicionário de sonhos para garantir que não passa despercebido nem a mais pequena pista do que exatamente estou a fazer nesse plano material precário, a cada dia. Desse lado do globo ou do outro, cada um com a sua precariedade. Pode ser calor e fome ou frio e dureza. Esse continente, não tanto esse país, mas a sociedade europeia como tal, faz-me sentir inflexível. Mesmo na pele.
Poderia ter uma mão no Terreiro do Paço e outra no Jardim das Virtudes sem ter de esticar o
peito mais que o suficiente, não fosse essa antiga caixa civilizadora que condena tudo que possa parecer natural. Como a pele nua de agora e do primeiro dia na Ilha de Vera Cruz.
Talvez tenha lido demasiada teoria social de esquerda que me fez livre ou ainda mais presa, pois de que adianta a liberdade quando todos os demais estão condicionados? Mais uma vez,
rigorosamente nada útil. Admiro a literatura de Edgar Allan Poe porque sinto que ele só conta as histórias em metade do livro. Na outra metade anda ali a dissolver uma por uma as palavras do seu dicionário de garganta, perseverante, faz isto ou colapsa em desgosto e ópio. Posso querer adquirir a mania, o homem foi embora há muito tempo. Ficou a máquina.
Outra vez não fiz um filme de terror mas fiz sim um documentário experimental. Na esperança
de explicar para mim mesma a importância conceptual do meu órgão favorito, pele. Gosto muito dela porque aceita todas as minhas loucuras. Nunca colapsa. Não posso dizer o mesmo dos meus pulmões ou do cérebro, mas a pele é mesmo minha amiga. E às vezes é o meu exército social porque ela sofre e é feliz, talvez por ter nascido nos trópicos, é a única explicação que encontro para a felicidade incessante que mora em mim independentemente de quanta melancolia eu derrame sobre ela. Sempre considerei a melancolia uma das coisas mais poéticas que existem e aprecio a tristeza enquanto que sou feliz por coisas bobas como escrever sobre a pele às 06:58 da mesma manhã de domingo.
Era uma vez um desejo de fazer filmes. E, outra vez, uma oportunidade. Agora tenho o hábito de gravar a minha voz, e como quem diz a sede sem preocupar-se com o rio, digo, e não procuro coisas para dizer, elas vem até mim, gentilmente, sussurram nas bordas da pele, fala-me disto.
Fala para ti mesma. E assim faço e fiz, sempre e incontestavelmente no meu tempo. A pele não se rende à invenção temporária do capital, e talvez esse somente seja útil para ditar o ritmo na escrita ou nos filmes do Hitchcock. Fora isso, a pele assume a sua própria maneira e funciona.
Funcionou, no doc. Estou chamando-o carinhosamente de doc como os meus sapatos favoritos.

Talvez o documentário tenha sido melhor executado do que esse papel, também porque fiz
uso dos conhecimentos técnicos meus e de outras pessoas no que toca a produção fílmica, e fui parcialmente inspirada pela despreocupação imagética da zona indie do cinema alemão naqueles filmes todos que vi em fevereiro e dormi num 1⁄4 deles porque era muito cedo para mim. Mais uma vez não era no horário da pele e não funcionava, é sempre uma incongruência; a sociedade quer que eu funcione do jeito que a sociedade funciona mas não percebo porque eu haveria de fazer isso uma vez que tenho a minha própria forma e esta me parece mesmo jeitosa, sem falar que nem de longe a sociedade tenha funcionado assim tão bem até agora para merecer a minha rendição. Talvez por isso antes das artes tenha ido estudar as sociedades, a política, as culturas, porque tudo me fascina mas não entendo e nem me encaixo. Se me puserem numa caixa, mais útil parece-me iluminar as bordas com fogo até vê-las cair por terra, antes de encontrar forma de dormir dentro dela. Eu não sou um gato, prefiro um animal noturno não domesticado. O que nasce selvagem morre com o fogo da natureza dentro. Há certa hostilidade em escrever papéis que vão parar à academia em primeira pessoa, mas por que não seria precisamente assim? Esse documentário não é sobre Hemingway ou Galeano. Esse documentário extensor da pele traduziu melhor do que esse papel o que eu pretendo com ela, e parece-me mesmo bem explicado, até a minha mãe disse, e fiquei surpresa por ela não ter comentado a necessidade dos mamilos. A palavra certa não é necessidade e sim naturalidade do corpo e do que quer que esse queira fazer e faça. Sem submeter-se a caixas para pôr mulheres dentro.
Eu talvez a princípio nem fosse uma mulher, e sim um animal selvagem. Mas agora sou uma
mulher, talvez por performance social. Independentemente da origem desse gênero em mim,
esse corpo me delata. Mesmo que eu não quisesse ser mulher ou pudesse. Mas por sorte posso, quero, gosto e sou. E é tudo tramitado e transmitido pela pele, ação e reação, recepção e influência social. Há imensa coisa incoerente a nível social. Todos os dias vejo erros dentro e fora de casa, e essa consciência tem de gerar com arte o que não gerou com a sociologia: mudança, ação, utilidade prática. A teoria é linda mas não muda a vida. Mas a arte sim. E tem um exímio poder de influência social quando intervém no que há de mais interior em alguém. Quando diz para a alma, diretamente e sem escrúpulos, sem caixa civilizada, crua, nua e honesta. Irresistível.
A arte nunca foi uma escolha, antes uma necessidade. Eu sou o portal e a lua de hoje sangrará.
Estas palavras são a senha de acesso, seja bem-vindo, você acaba de destrancar a pele